Um outro olhar sobre a pandemia: Da digitalização da saúde à importância dos cuidados de proximidade
"O desafio da literacia tecnológica é e vai continuar a ser algo a que as sociedades terão de responder, exigindo-se mais investimento para formação e adaptação às novas necessidades."
Há exatamente dois anos, o mundo confrontou-se com a realidade de ter de viver em pandemia. O que conhecíamos até então acabou moldado pela incerteza e pelo medo, à medida que os contágios, as variantes e os casos se multiplicaram. Mas, ao mesmo tempo, também foi possível criar respostas rápidas, em grande escala e que vão marcar o nosso futuro. Para melhor.
Um outro olhar sobre a covid-19, focado nas boas práticas desenvolvidas para responder à maior crise de saúde pública dos últimos 100 anos, leva-nos a concluir que o papel da tecnologia saiu reforçado, ao encurtar distâncias, não só a nível social, mas também nos cuidados de saúde. Mas a digitalização do setor, tão útil em momentos de pressão, terá de ter em conta o acesso equitativo e universal a serviços de qualidade. Só assim será possível chegar a todos, em especial aos grupos mais vulneráveis e com menor acesso a informação, como os idosos ou pessoas em situação de exclusão.
O desafio da literacia tecnológica é e vai continuar a ser algo a que as sociedades terão de responder, exigindo-se mais investimento para formação e adaptação às novas necessidades. Vale a pena recordar que, no final de 2019, um provedor médio europeu de saúde gastava entre 2,9% a 3,9% da sua despesa total anual em produtos e serviços digitais.
A interoperabilidade entre os sistemas é igualmente importante, sendo necessário que as várias unidades de saúde comuniquem entre si. Por todo o mundo, ficou bem patente que a existência de plataformas comuns permitiu um acesso facilitado aos dados sobre vacinação, resultados dos testes covid-19 e disponibilidade de camas para internamento. Esta possibilidade de uma comunicação mais eficaz e de partilha de informação pode ser ainda aprofundada ao nível da prática clínica propriamente dita, já que tem a capacidade de detetar e tratar precocemente situações de risco. Numa perspetiva de longo prazo, centrada nas famílias, temos pela frente a oportunidade única de construir e seguir o historial clínico de milhões de pessoas. Contudo, a questão dos dados pessoais e de quem tem o direito de aceder a estes dados coloca-se como premente.
A covid-19 levou-nos igualmente a uma reflexão interior, sobre a solidão e o isolamento, recolocando os valores humanistas na saúde e nos cuidados providenciados. Os exemplos de solidariedade, tão recorrentes e comoventes, reafirmaram o (por vezes perdido) sentido de comunidade e as relações de proximidade. Essa proximidade deve ser também central para promovermos o apoio ao domicílio, adiando situações de institucionalização, em especial da população mais idosa.
A oferta de cuidados individualizados e humanizados em casa, centrados nas necessidades de cada um, permite otimizar a resposta dos sistemas de saúde, que através das equipas no terreno conseguem identificar e acompanhar a evolução das condições em que os idosos vivem e as suas necessidades. Em ambiente hospitalar ou numa outra unidade, seria impossível averiguar e, sobretudo, atuar preventivamente.
À pandemia ficamos ainda a dever a sensibilização para uma maior compreensão do problema da saúde mental, intergeracional e que não conhece estratos sociais ou origens. Ainda assim, estes tempos recentes exacerbaram o problema, conforme documenta o estudo "Saúde Mental em Tempos de Pandemia": cerca de 25 por cento dos participantes apresenta sintomas moderados a graves de ansiedade, depressão e stress pós-traumático - uma realidade em linha com o que se passa em todo o mundo.
Normalmente, em situações de crise, conseguimos retirar o melhor de nós próprios. Saibamos compreender as lições da pandemia, alavancando estratégias com benefícios inegáveis para os sistemas de saúde e, principalmente, para quem necessita destes.
Diretora Técnica de UCC e ERPI da Ordem da Trindade